Quando
os dias não são bons pode uma palavra dar-lhes salvação? Ontem
tive um furo à hora de almoço. Não um furo qualquer mas um
daqueles que logo te esvazia o pneumático todo. Nunca mudara um pneu
neste carro. Pareceu-me um mistério de difícil solução. A roda
suplente, uma roda com cariótipo programado para apenas devolver ao
carro a autonomia qb para chegar a uma garagem, repousava sob coisas
antigas como cadeiras para bebé, garrafas de Monte Velho, um
para-vento, lixo diverso. Sobre a jante estacionei à porta de uma
pizzaria cara e onde o dono só fala italiano para os estrangeiros
que nós não éramos. Comi mal. Mas o pior estava para vir.
Como
já disse, a jante do Seat parecia-me não ser acessível aos parcos
instrumentos que o losango dentro da roda suplente forneciam. Mandei
a minha filha estudar para casa e veio ter comigo um obeso rebocador,
nado e criado na freguesia de Paranhos da cidade do Porto. Afinal a
intransponível jante abriu-se nas mãos do “meu amigo” com um
pequeno ganchinho que revelava os grossos pernos habituais. Eu bem
tinha referido ao telefone – em vários telefonemas que tinha feito
– que as cabeças que recobriam os pernos tinham no meio um fino
orifício sextavado… Perguntaram-me por telefone: “O que é isso,
sextavado?” Indignei-me. Sextavadas ao não as cabeças que
recobriam os pernos eram de fácil remoção. E o obeso condutor do
reboque levou-me sessenta mocas pela aula. E segui para a Norauto.
A
Norauto fica perto do Marshopping. E caminhar faz-me bem. A pé a
Norauto não fica assim tão perto do Marshopping. O Marshopping tem uma Fnac e
uma Bertrand. A Fnac tinha quase toda a discografia da P.J.Harvey em
promoção. E o quarto volume daquela saga da Elena Ferrante. A
Bertrand não tinha nem uma coisa nem outra. As obras no hall do
Marshopping são angustiantes. Saí para a rua. Fazia uma brisa
agradável e a Norauto telefonou-me: pneu insalvável, “Goodyear ou
Michelin?”. “Goodyear.”, respondi. E fui lanchar ao Leroy
Merlin. Há coisas tristes na vida e umas estarão acima e outras
abaixo de lanchar no Leroy Merlin. Mas confirma-se: é triste lanchar
no Leroy Merlin. Porém a multidão era menor e não me restava
alternativa.
Recebi
o carro com rodados novos pelas 18h30m. Fui recuperar a companhia da
minha filha, jantei em São João da Madeira e – lá – vi o filme
“Capitão América – Guerra Civil”. Vimos nós e mais ninguém,
pois mais ninguém havia na sala. O filme é basicamente um filme de
porrada fina, no sentido em que os filmes do Bud Spencer e do Terence
Hill eram de porrada grossa. Tem bons actores e fala mal da ONU, o
que está certo. É de uma banalidade atroz elogiar os efeitos
especiais.
Antes
do filme – e porque o alarme de pressão dos pneus tinha acendido
na viagem, o que sempre acontece depois de qualquer revisão ou
mexida no carro – fui rever a pressão dos pneus na Repsol ali ao
lado. Pressão cujos valores desejados eu desconhecia. Comecei a
aferir para a pressão “que estava”. A Cata saiu “para ver”.
E disse-me, nonchalante, “Acho que as pressões “é” 2.4 à
frente e 2.2 atrás. Vi no tampão da gasolina”. Isto é o que eu
chamo trabalho de equipa. Tinha portanto estado a esvaziar os pneus,
voltei a enchê-los, reset, ok.
Ao
sair do filme esperavam-nos um segurança, o rapaz da porta do
cinema, um rapaz da limpeza. Na viagem de volta como na anterior,
qualquer solavanco fazia-me temer o pior, um segundo furo, sei lá. Nunca tinha reparado como as nossas auto-estradas têm um piso tão irregular, eu diria traiçoeiro.
Deitado
na minha cama, uma e meia da manhã, pensei “Não há bem que
sempre dure, mas também não há mal que não acabe! Que puta de dia
mais sextavado!” E adormeci.
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